A Guerra na Ucrânia — Tanques e Tragédia.  Por Michael Brenner

Seleção e tradução de Francisco Tavares

13 min de leitura

Tanques e Tragédia

 Por Michael Brenner

Publicado por em 27 de Janeiro de 2023 (ver aqui)

 

Na ausência de reportagens credíveis dos principais meios de comunicação social, Michael Brenner oferece um resumo sobre os antecedentes da guerra de inspiração neoconservadora na Ucrânia e a sua opinião sobre a actual situação estratégica.

 

Em 21 de Dezembro de 2022, a sede da NATO em Bruxelas juntou-se a outros sítios internacionais ao apagar as suas luzes em solidariedade com a Ucrânia. (NATO, Flickr, CC BY-NC-ND 2.0)

 

Nunca na memória foi tão assustador averiguar o que se passa durante uma grande crise internacional como no caso da Ucrânia.

Essa triste verdade deve-se muito à ausência total de relatórios verdadeiros e de análises interpretativas honestas por parte dos meios de comunicação dominantes (MCD). Servem-nos abundantes porções de falsidade, fantasia e farsa grosseiramente misturadas numa narrativa cuja relação com a realidade é ténue.

A ingestão quase universal desta confecção é possível graças à abdicação de responsabilidade – intelectual e política – por parte da classe política estado-unidense, desde os altos e poderosos de Washington até à galáxia de grupos de reflexão sem pensamento e das egocêntricas universidades.

Agora, a legião de argumentistas para esta história ficcional está a trabalhar com energia renovada para incorporar alguns elementos novos: A decisão do Presidente Joe Biden/NATO de enviar uma ecléctica panóplia de blindados para reforçar as forças vacilantes da Ucrânia; e a crescente evidência de um desmantelamento gradual e paralisante do seu exército pelo exército superior da Rússia.

Como sempre, essa reacção acaba por ser um exercício de comportamento evasivo. Os cerca de 100 tanques previstos para chegarem de forma fragmentada durante o próximo ano serão uma “mudança dos dados do jogo”. O exército de Putin é um comprovado “tigre de papel”. A “Democracia” está destinada a prevalecer sobre a barbárie despótica.

Ou assim nos é dito em doses de óleo de cobra que nos fazem arder o estômago. Acho que todos nós temos formas de nos divertir.

Uma refutação sistemática desta construção mítica é ao mesmo tempo supérflua e fútil. Tem sido feita ao longo do último ano por analistas capazes, experientes e ponderados que sabem realmente do que estão a falar: O Coronel Douglas Macgregor, o professor Jeffrey Sachs, o Coronel Scott Ritter e um punhado de outros que, juntos, são relegados para websites obscuros e desprezados pelos MCD.

(Aqui está uma análise aguda de Ritter no Consortium News do valor militar real da infusão de tanques e outros armamentos e do que esse movimento augura para a trajectória da guerra).

Em jeito de introdução, acrescento a minha própria avaliação do actual quadro estratégico e para onde nos dirigimos. Baseia-se em inferências – até certo ponto – bem como na minha leitura da genealogia do conflito. Os pontos principais são apresentados em frases afirmativas, sem rodeios. Isso parece-me necessário para quebrar o nevoeiro das fabricações (mentiras) e distorções calculadas que obscurecem o que deveria ser evidente.

 

Pontos de partida

 

Cimeira da NATO de Abril de 2008 em Bucareste, Roménia, onde as “aspirações da Ucrânia de aderir à NATO” foram formalmente bem-vindas. (Arquivo da Chancelaria do Presidente da República da Polónia, Wikimedia Commons)

 

O ponto de partida da crise foi em Fevereiro de 2014, quando a administração Obama inspirou e orquestrou um golpe em Kiev que usurpou o Presidente democraticamente eleito Viktor Yanukovych. Victoria Nuland, Secretária de Estado Adjunta dos EUA, estava lá, na Praça Maidan, líder da claque e conivente juntamente com o seu irmão da revolução de cores, o Embaixador Geoffrey Pyatt.

Colaboraram com grupos violentos e ultra-nacionalistas extremos com os quais Washington cultivava activamente laços há vários anos. Estes ultra-nacionalistas dominam até hoje o serviço de segurança da Ucrânia e o principal órgão político do governo, o Conselho de Segurança.

O golpe de Maidan foi o culminar do objectivo americano profundamente enraizado de incorporar uma Ucrânia anti-russa na órbita organizacional ocidental: A NATO acima de tudo – como o Presidente George W. Bush procurou fazer já em 2008.

O cerco de uma Rússia mantida à margem de uma Europa dirigida pelos americanos tinha sido um objectivo desde 1991. A emergência de um líder forte e altamente eficaz, representado por Vladimir Putin, acelerou a percepção da necessidade de manter a Rússia fraca e fechada sobre si mesma.

No topo da carrinha, o líder da oposição ucraniana de extrema-direita Oleh Tyahnybok, esquerda, juntamente com Vitali Klitschko e Arseniy Yatsenyuk, centro, dirigindo-se aos manifestantes da Euromaidan, 27 de Novembro de 2013. (Ivan Bandura, CC BY 2.0, Wikimedia Commons)

 

A revolta/secessão do Donbass, provocada pelo golpe de Maidan que levou à chegada ao poder de elementos raivosos em Kiev dedicados a subjugar os cerca de 10 milhões de russos do país, teve como resultado a autonomia das províncias de Donetsk e Luhansk, bem como a integração da Crimeia (parte histórica e demográfica da Rússia) na Federação Russa.

A partir desse momento, os Estados Unidos conceberam e executaram uma estratégia para inverter ambos as mudanças, para colocar a Rússia de novo no seu lugar e para traçar uma clara linha de separação entre ela e toda a Europa a Oeste da Rússia.

A Ucrânia tornou-se um protectorado americano de facto. Os principais ministérios encheram-se de conselheiros americanos, incluindo o Ministério das Finanças chefiado por um cidadão americano enviado de Washington. Foi levado a cabo um programa maciço de armamento, formação e reconstituição geral do exército ucraniano. (Nos anos do Presidente Barack Obama, o supervisor do projecto era o Vice-Presidente Joe Biden).

7 de Dezembro de 2015: Biden, vice-presidente dos EUA, e Petro Poroshenko, presidente da Ucrânia, em Kiev. (Embaixada dos E.U.A. em Kyiv, Flickr)

 

Washington também usou a sua influência para minar os acordos de Minsk II nos quais a Ucrânia e a Rússia assinaram uma fórmula para a resolução pacífica da questão do Donbass, supostamente subscrita pela Alemanha e pela França, e aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Sabemos agora graças a testemunhos públicos francos que Kiev, Berlim e Paris não tinham qualquer intenção, desde o início, de os implementar. Pelo contrário, era um dispositivo para ganhar tempo para reforçar a Ucrânia ao ponto de poder retomar os territórios “perdidos”, infligindo uma derrota militar à Rússia.

Foram feitos preparativos pela administração Biden para aumentar as tensões ao ponto de um conflito armado ser inescapável. Os esporádicos bombardeamentos da cidade de Donetsk (onde 14.000 civis foram mortos entre 2015 e 2002, de acordo com uma estimativa oficial de uma comissão das Nações Unidas) foram aumentados várias vezes, unidades do exército ucraniano reunidas em massa ao longo da fronteira demarcada. A Rússia adiantou-se. O resto é história.

(Tudo o que é dito acima é uma questão de registo público e documentado).

Março, 2015: Civis passam enquanto a OSCE acompanha o movimento do armamento pesado na Ucrânia Oriental. (OSCE, CC BY-NC-ND 2.0)

 

Onde Estamos Agora?

Aqui, a inferência tem precedência.

A administração Biden comprometeu-se a uma escalada através da implantação de sistemas de armas pesadas até agora excluídos. Também tem pressionado os seus aliados da Europa Ocidental para fornecerem armamento. Porquê? As pessoas que conduzem a política em Washington não podem suportar a perspectiva de uma derrota.

Ou seja, um esmagamento do exército ucraniano pela Rússia, a sua incorporação das reclamadas quatro províncias e a fátua narrativa ocidental que se revelou como pouco mais do que uma série de mentiras. Foi investido demasiado em termos de prestígio, dinheiro e capital político para que esse resultado possa ser tolerado.

Além disso, tal como a Ucrânia tem sido utilizada cinicamente como um instrumento para pôr a Rússia de joelhos, a desnaturalização da Rússia como uma potência também é vista como parte integrante do confronto global com a China que domina todo o pensamento estratégico.

A opção de trabalhar em termos de coexistência e concorrência não coerciva com a China foi rejeitada liminarmente. A quase totalidade da classe política americana está determinada a reforçar a hegemonia global do país e está a preparar-se para o fazer. O resto do país ainda não foi informado, e está demasiado distraído para se preocupar em prestar atenção aos sinais evidentes do que está em curso.

O programa estratégico foi exposto no famigerado memorando de Março de 1991 de Paul Wolfowitz, então subsecretário de política do Pentágono, sobre a prevenção da ascensão de qualquer superpotência rival. Isto tornou-se a Escritura sagrada para a maior parte da comunidade de política externa.

(O seu conteúdo, juntamente com a génese dos neoconservadores que o adoptaram há muito tempo como escrito sagrado, fez a transformação histórica de apenas uma seita para passar a ser a fé doutrinal semi-oficial de todo o império americano).

2 de Outubro de 1991: Paul Wolfowitz, à direita, como subsecretário de Defesa para Política, durante conferência de imprensa sobre a Operação Tempestade no Deserto. General Norman Schwarzkopf no centro. (Lietmotiv via Flickr)

 

O fracasso absoluto em destruir a economia russa, abrindo assim o caminho para a mudança política em Moscovo, e tornar inútil o seu suplemento ao poder chinês, é uma desilusão; mas isso não intimida verdadeiros crentes. Os Estados Unidos unificaram com rédea um Ocidente colectivo, como seus peões dispostos a aceitar qualquer movimento que Washington queira que eles sigam.

O acontecimento marcante dessa extraordinária subordinação foi o acordo da Alemanha em permitir que os Estados Unidos (e associados) fizessem explodir os gazodutos Nordstrom, que sucessivos governos de Berlim tinham considerado essenciais para satisfazer as necessidades energéticas da indústria alemã.

Pode-se racionalizar isso dizendo que o Chanceler Olaf Scholz estava pronto para “se sacrificar pela equipa”. Mas que equipa? Que interesse nacional primordial? Os anais da história não registam nenhum caso comparável de um Estado soberano que impõe a si próprio danos tão graves por sua própria vontade.

Mapa das explosões causadas nas condutas do Nord Stream em 26 de Setembro de 2022. (FactsWithoutBias1, CC-By-SA 4.0, Wikimedia Commons)

 

Uma vantagem adicional do caso da Ucrânia, aos olhos dos decisores políticos americanos, é a cristalização de um sistema internacional cuja estrutura fundacional é bipolar – um mundo “nós contra eles” semelhante à Guerra Fria – conveniente na medida em que coloca poucas exigências à imaginação intelectual ou à diplomacia hábil para a qual não têm aptidão nem apetite.

Todos os membros do Ocidente colectivo subscreveram o plano de escalada Biden. Assim, também as facções dominantes no governo do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.

Há boas razões para pensar que o objectivo da súbita visita do director da CIA, William Burns, a Kiev alguns dias antes do anúncio do destacamento dos tanques Abrams, era assegurar que não haveria desertores entre o círculo interno de Zelensky ou outros altos funcionários que se pudessem acobardar face à perspectiva de a Ucrânia se tornar o campo de batalha para uma guerra russo-americana com efeitos semelhantes aos que sofreu entre 1941 e 1944.

A visita de Burns foi seguida quase imediatamente por uma purga maciça das fileiras de liderança, juntamente com funcionários de níveis inferiores. A linha oficial, aceite pelos sempres dóceis MCDs, foi que esta purga representou uma campanha virtuosa contra a corrupção – embora no meio de uma guerra em grande escala.

Foi-nos dito que Burns veio até aqui para esclarecer algumas questões menores (e talvez para tomar banhos?). O próprio Zelensky tinha-se tornado um trunfo demasiado valioso como salvador anunciado da Ucrânia para se poder desfazer dele – tal como o foi Ngo Dinh Diem no Vietname em 1963.

O Presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky exibindo um presente dado pela Presidente da Câmara Nancy Pelosi após o seu discurso no Congresso dos EUA em 21 de Dezembro de 2022. (C-Span)

 

Burns sem dúvida ofereceu garantias de que ele estava seguro – qualquer um outro iria ser atirado borda fora.  É quase impossível ver como é que os objectivos dos Estados Unidos podem ser alcançados na Ucrânia. Contudo, os neoconservadores não têm “marcha atrás” – para usar a acertada frase do analista Alexander Mercouris.

Eles instigaram uma cruzada destinada a assegurar o domínio global dos Estados Unidos – para sempre e eternamente. A Ucrânia é uma etapa no caminho para essa Jerusalém visionária. No seu grande esquema, porém, não se preocuparam com uma estratégia coerente e viável para a resolução da crise actual.

Quanto ao Presidente Joe Biden, ele parece estar apenas nominalmente no comando. Ele foi inteiramente capturado pelos neoconservadores. Ele não ouve outras vozes. Como falcão instintivo e vitalício, inclina-se na sua direcção. Ele está velho e fraco.

Antes do final do ano, é provável que todos nós enfrentemos o momento da verdade. As forças russas estarão sobre o Dnieper e, em alguns lugares, para além dele. O exército da Ucrânia estará sem fôlego – não obstante os Abrams, Leopard IIs, Challengers, Bradleys, etc. O que fará então o maligno e irresponsável bando de Biden? Qualquer coisa é possível.

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O autor: Michael Brenner é professor de assuntos internacionais na Universidade de Pittsburgh (ver aqui)

 

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